Seu portal de pesquisas em queijos artesanais

Listeria monocytogenes: problema real ou negligenciável para os queijos artesanais?

Listeria monocytogenes: problema real ou negligenciável para os queijos artesanais?

 

 Listeria monocytogenes é uma bactéria Gram-positiva que ganhou notoriedade nos últimos anos devido ao seu impacto na saúde pública. Embora a infecção por essa bactéria tenha uma incidência relativamente baixa, os efeitos da listeriose (termo abrangente utilizado para as doenças provocadas por L. monocytogenes) podem ser devastadores, especialmente para grupos de risco. O aumento da expectativa de vida e a maior prevalência de condições que comprometem o sistema imunológico, como doenças crônicas e imunodeficiências, ampliaram o número de pessoas suscetíveis a essa infecção.

 A listeriose é especialmente perigosa para grávidas, recém-nascidos, idosos e pessoas imunocomprometidas. Em indivíduos saudáveis, a infecção pode ser leve e passar despercebida, geralmente com problemas intestinais típicos de infecções alimentares. No entanto, para os grupos vulneráveis, os sintomas podem ser muito mais graves.

 Em grávidas a listeriose pode ser assintomática ou apresentar sintomas leves semelhantes a uma gripe. No entanto, a infecção é perigosa porque pode atravessar a barreira placentária e causar aborto, parto prematuro ou infecção no recém-nascido.  

 Em recém-nascidos a infecção pode levar a meningite neonatal, uma inflamação das membranas que envolvem o cérebro e a medula espinhal, ou sepse (infecção generalizada). Essas manifestações têm alta mortalidade e podem deixar sequelas neurológicas.

 Os idosos, imunocomprometidos e pacientes com doenças crônicas ou que fazem uso de imunossupressores como no caso de transplantados ou em tratamento de câncer, também estão sob risco. A infecção pode evoluir para sepse, meningite e até óbito se não diagnosticada a tempo.

 A L. monocytogenes é particularmente perigosa na produção de alimentos porque sobrevive e se multiplica em condições que normalmente inibem outros patógenos. Ela pode crescer em ambientes refrigerados e resistir a altas concentrações de sal. Embora a pasteurização do leite e derivados seja eficaz para matar essa bactéria, a contaminação pode ocorrer após o processo térmico, como por exemplo, durante o armazenamento, envase e rotulagem. Superfícies e equipamentos contaminados são uma fonte comum de reintrodução do patógeno. Isso destaca a importância de boas práticas de fabricação (BPF) em toda a cadeia produtiva. Mesmo produtos pasteurizados devem ser armazenados adequadamente e manuseados com higiene para evitar recontaminações. A manipulação correta durante o transporte e venda também são fatores importantes para garantir a segurança do consumidor.

No caso dos queijos, a maturação desempenha um papel crucial na inibição da L. monocytogenes. Durante esse processo, uma série de fatores combinados torna o desenvolvimento da bactéria improvável, particularmente em queijos duros. Durante a maturação, o pH do queijo diminui, tornando o ambiente mais ácido e hostil, a umidade do produto também é reduzida, limitando a multiplicação do patógeno, há também um aumento na concentração de sal e, além disso, a microbiota responsável pela maturação do queijo produz compostos inibidores, como ácidos orgânicos e bacteriocinas, que conjuntamente ajudam a controlar a proliferação de patógenos.

Por outro lado, queijos frescos e de maturação curta são mais suscetíveis à sobrevivência de L. monocytogenes. Produtos artesanais feitos com leite cru representam um risco ainda maior, pois não passam pelo processo de pasteurização, que elimina diversos patógenos, incluindo a Listeria. Dessa forma, a maturação adequada e a adoção de boas práticas em todas as etapas da produção são essenciais para garantir a segurança, especialmente nesse tipo de produto. O consumo de leite cru e queijos frescos feitos com leite não pasteurizado deve ser evitado, não apenas devido ao risco de contaminação por L. monocytogenes, mas também por outros patógenos entéricos.

Um dos maiores desafios no combate à L. monocytogenes é sua capacidade de formar biofilmes. Biofilmes são comunidades de microrganismos que se aderem a superfícies, como equipamentos de produção e tubulações, e são protegidos por uma matriz extracelular. Essa estrutura dificulta a eliminação completa dos patógenos, pois os biofilmes são resistentes a desinfetantes e ao ambiente refrigerado.

 Na indústria de alimentos, superfícies mal higienizadas ou com acúmulo de resíduos são locais ideais para a formação de biofilmes. A presença desses biofilmes pode resultar na contaminação contínua dos produtos ao longo do tempo, mesmo após limpezas regulares. Por isso, é fundamental adotar procedimentos rigorosos de higienização e controle ambiental, como a limpeza profunda e o uso de produtos eficazes contra biofilmes.

 O conhecimento sobre L. monocytogenes e suas estratégias de sobrevivência avançou significativamente nos últimos 20 anos. Pesquisas recentes investigam os genes e proteínas que conferem virulência à bactéria, como a internalina A, que facilita a invasão de células hospedeiras, e a listeriolisina O, que permite que a bactéria escape do sistema imunológico. Esses estudos ajudam a desenvolver novas estratégias para combate e controle.

 Outro campo promissor é o biocontrole, que utiliza bactérias lácticas para inibir o crescimento do patógeno. Essas bactérias produzem compostos antimicrobianos, como bacteriocinas, que são eficazes contra L. monocytogenes. Pesquisas mostram resultados promissores em laboratório, como é o caso de um estudo recente desenvolvido no Food Research Center da USP (Lima et al. 2024), mas ainda é um desafio replicar essas soluções em escala industrial.  

 Além disso, o uso do sequenciamento completo do genoma completo (WGS-whole genome sequencing) revolucionou o rastreamento de surtos de listeriose. Com essa tecnologia, é possível identificar rapidamente as cepas envolvidas e entender melhor como a bactéria se dissemina. Isso facilita o controle em fábricas e a resposta rápida em casos de surtos.

Conforme informações da Engenheira de Alimentos, Dra. Alessandra Casagrande Ribeiro, o controle da Listeria enfrenta diversos desafios. Um dos principais problemas é a ausência de um sistema eficaz de notificação e investigação de casos de Doenças Transmitidas por Alimentos (DTA) no Brasil, o que dificulta a obtenção de dados precisos sobre a gravidade do problema. Além disso, a L. monocytogenes afeta pessoas com o sistema imunológico enfraquecido por outras enfermidades, o que agrava o quadro clínico. Outro ponto crítico é a necessidade de tratamentos específicos com antibióticos, que podem ser menos eficazes se o atendimento médico for tardio. Além disso, o antibiótico para o tratamento das listeriose deve penetrar nas células hospedeiras, difundir-se no interior das células e se manter estável no ambiente intracelular. Como resultado destas exigências, os antibióticos usuais podem ser ineficazes em até 70% dos casos de listeriose.

Por fim, vale ressaltar que não temos dados sobre surtos de listeriose provocados por queijos artesanais no Brasil, mas surtos envolvendo outros queijos artesanais feitos com leite cru, particularmente queijos frescos (ou macios) ao redor do mundo já foram bem documentados. A incidência de L. monocytogenes em queijos artesanais brasileiros varia de zero a 5%, dependendo do estudo. Portanto, os consumidores precisam estar cientes dos riscos associados ao consumo de queijos feitos com leite cru, em relação à listeriose, especialmente aqueles maturados por períodos curtos de tempo (queijos frescos ou meia cura, feitos com leite cru) e aqueles provenientes de queijarias sem registro nos órgãos sanitários de inspeção. Isso torna o consumo de queijos feitos com leite cru, ou mesmo queijos maturados de forma inadequada, uma possível fonte de contaminação. A conscientização dos consumidores é essencial para reduzir os riscos, e encarar este problema real e não negligenciável. Além disso, produtos fatiados no mercado, mesmo que tenham sido previamente pasteurizados, podem ser contaminados durante o fatiamento (contaminação do fatiador ou contaminação cruzada) e também devem ser evitados pelo grupo de risco, especialmente se ficaram refrigerados por muitos dias e encontrarem-se próximos ao prazo de validade.

 

Fontes:

 

Barancelli, G.V.; Silva-Cruz, J.V.; Porto, E., & Oliveira, C.A.F. Listeria monocytogenes: ocorrência em produtos lácteos e suas implicações em saúde pública. Arquivos do Instituto Biológico, 2011, 78(1), 155–168. https://doi.org/10.1590/1808-1657v78p1552011

 

Ribeiro, A.C.; Almeida, F.A.; Medeiros, M.M.; Miranda, B.R.; Pinto, U.M.; Alves, V.F. Listeria monocytogenes: An Inconvenient Hurdle for the Dairy Industry. Dairy, 2023, 4, 316-344. https://doi.org/10.3390/dairy4020022

 

Lima, J.M.; Carneiro, K.O.; Pinto, U.M.; Todorov, S.D. Bacteriocinogenic anti-listerial properties and safety assessment of Enterococcus faecium and Lactococcus garvieae strains isolated from Brazilian artisanal cheesemaking environment. Journal of Applied Microbiology. 2024, 135, 159. https://doi.org/10.1093/jambio/lxae159

 

Medeiros, M.M.; Almeida, F.A.; Ribeiro, A.C.; Ribeiro, V.B.; Pinto, U.M. Listeria monocytogenes. In: Flávio Alterthum. (Org.). Microbiologia - Trabulsi-Alterthum. 7ed.Rio de Janeiro: Atheneu, 2024, v. 1, p. 295-306.

 

Chiarini, E.; Pinto, U.M. Listeria monocytogenes. In: Franco, B.D.G.M.; Landgraf, M. (Org.). Microbiologia dos Alimentos. 2ed. Rio de Janeiro: Atheneu, 2023, v. 1, p. 54-60.

 

https://www.saude.sp.gov.br/resources/cve-centro-de-vigilancia-epidemiologica/areas-de-vigilancia/doencas-transmitidas-por-agua-e-alimentos/doc/bacterias/2013listeria_monocytogenes.pdf